Clifford D. Simak: O Humanismo entre Estrelas
- Tramatura
- 10 de jun.
- 4 min de leitura
Como um contador de histórias do interior americano ajudou a transformar a ficção científica em literatura de reflexão e esperança — e por que seu conto “O mundo que não poderia ser” ainda ressoa com força.

1. Uma estrada de terra entre galáxias
Na vastidão do cosmos, Clifford D. Simak não viu apenas estrelas e civilizações alienígenas — viu, sobretudo, o homem, seu trabalho e a terra sob seus pés. Enquanto muitos escritores de ficção científica do século XX olhavam para o futuro com olhos de engenheiro ou de soldado, Simak preferia a lente de um filósofo pastoral. Sua ficção é uma estrada de terra que serpenteia por florestas, galáxias e pensamentos — mais voltada para os sentimentos do que para os sistemas de propulsão.
É por isso que sua obra continua a tocar leitores mais de meio século depois. Porque, mesmo em mundos impossíveis, Simak nos lembra do que ainda temos de mais humano.
2. O jornalista que plantava ideias
Clifford Donald Simak nasceu em 3 de agosto de 1904, em Millville, Wisconsin — uma comunidade rural tão pequena quanto as que mais tarde povoariam suas histórias. Cresceu cercado por fazendas, animais e silêncios longos, que moldaram seu senso de espaço e ritmo narrativo. Formou-se em jornalismo e trabalhou por mais de trinta anos como editor no Minneapolis Star Tribune, onde se notabilizou por sua ética, clareza e comprometimento.
Escrevia nas horas vagas — geralmente à noite, depois do expediente. E o que escrevia começou a se destacar já na década de 1930, em revistas pulp como Wonder Stories e, depois, Astounding Science Fiction, sob a batuta do lendário editor John W. Campbell.
Campbell reconheceu algo raro em Simak: uma voz distinta, compassiva, que podia tornar até um robô sentimental crível. Simak, por sua vez, aproveitou a plataforma para explorar os temas que lhe eram caros — com uma consistência admirável e uma recusa deliberada à espetacularização da ciência.
3. Entre robôs pastores e portais cósmicos
Simak se tornou um dos mestres da chamada “ficção científica pastoral”. Em seus contos e romances, a ciência encontra a natureza, o futuro se acalma no campo, e os robôs pastoreiam animais enquanto filosofam sobre Deus. Em vez de batalhas espaciais, ele oferecia portais para a introspecção.
Seu livro mais conhecido, City (1952), é uma coletânea de contos interligados em que o destino da humanidade é narrado por cães conscientes, guardiões da memória humana em um mundo abandonado. Já Way Station (1963), vencedor do prêmio Hugo, acompanha um homem comum incumbido de manter uma estação interplanetária secreta no interior dos Estados Unidos — um símbolo da confiança que Simak depositava no indivíduo.
Ele também escreveu sobre flores alienígenas com poderes de cura (All Flesh is Grass), universos paralelos espirituais (A Choice of Gods) e sociedades que evoluem além do conceito de guerra. Mas mesmo diante das mais ambiciosas conjecturas científicas, seu tom permanecia sereno, quase meditativo. Era um contador de histórias do futuro com alma de cronista rural.
4. “O mundo que não poderia ser” — ficção científica com empatia

Publicado originalmente em 1958, o conto The World That Couldn't Be — incluído na edição #001 da revista Científica Ficção com o título “O mundo que não poderia ser” — é um exemplo perfeito da abordagem simakiana da ficção científica.
A trama acompanha um fazendeiro galáctico tentando cuidar de uma plantação em um planeta remoto. A fauna é estranha, os habitantes locais desafiam as premissas biológicas conhecidas e o protagonista logo se vê diante de dilemas éticos e existenciais maiores do que esperava. Longe de oferecer uma solução baseada em força ou superioridade tecnológica, Simak conduz o conto por caminhos de empatia, diálogo e contemplação ecológica. Ao fazer isso, antecipa debates contemporâneos sobre biocentrismo, alteridade e colonização.
A escolha desse conto para inaugurar a série Científica Ficção não foi acidental. “O mundo que não poderia ser” representa uma chave de leitura para toda a proposta editorial da coleção: histórias que desafiem, encantem e nos façam refletir sobre nosso lugar no universo — sem perder a ternura nem a inteligência.
5. Um autor para além do seu tempo
Simak recebeu em vida alguns dos mais importantes prêmios da ficção científica — Hugo, Nebula e Bram Stoker (pelo conjunto da obra). Foi nomeado Grand Master da SFWA em 1977, ao lado de outros gigantes como Heinlein e Asimov. Mas, mesmo com reconhecimento crítico, nunca foi tão popular quanto alguns de seus contemporâneos. Talvez por sua recusa ao sensacionalismo, talvez por sua escrita mais filosófica do que explosiva.
Hoje, no entanto, ele é redescoberto por uma nova geração de leitores que buscam na ficção científica mais do que ação: buscam significado. Autores como Ursula K. Le Guin, Ray Bradbury e Ted Chiang beberam da mesma fonte — aquela em que o futuro serve de espelho para o presente e a ética importa tanto quanto a tecnologia.
Seus livros vêm sendo reeditados em diversos países. E seus contos, como “O mundo que não poderia ser”, continuam a aparecer em coletâneas que celebram a ficção científica como arte literária — e não apenas entretenimento.
6. De volta à estrada rural das estrelas

A ficção científica de Clifford D. Simak é um lembrete de que o futuro pode — e talvez deva — ser gentil. Em suas histórias, não há pressa, mas há urgência. Não há grandes heróis, mas há pequenos gestos de humanidade. Não há destruição glorificada, mas construção silenciosa.
Ao incluir “O mundo que não poderia ser” na edição inaugural da Científica Ficção, a Tramatura homenageia não apenas um autor, mas uma maneira de sonhar diferente — uma que aposta na empatia como forma de progresso.
E quem sabe, ao virar a próxima página, não estejamos também nós caminhando pela mesma estrada de terra que leva às estrelas?
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