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Kurt Vonnegut

  • Foto do escritor: Jefferson Sarmento
    Jefferson Sarmento
  • 6 de fev. de 2024
  • 3 min de leitura

Atualizado: 6 de mai.

"2 B R 0 2 B": A Sombria Sinfonia da Imortalidade


Kurt Vonnegut
Kurt Vonnegut

Em julho de 2023, a primeira edição de Científica Ficção chegava com algumas ousadias e sonhos, entre esses, um mergulho nas profundezas da imaginação distópica com um conto cheio de ironia cortante e uma humanidade surpreendente: "2 B R 0 2 B" de Kurt Vonnegut. O nome do autor, por si só, já nos conduz a um universo literário singular, onde o humor negro dança lado a lado com a crítica social afiada, e a fragilidade da condição humana é examinada sob a lente implacável de futuros possíveis, mas nem sempre desejáveis.

Capa da "Worlds of If" de janeiro de 1962, ende foi publicado o conto "2 B
Capa da "Worlds of If" de janeiro de 1962, ende foi publicado o conto "2 B

Kurt Vonnegut Jr., um mestre da sátira e um observador arguto das contradições da sociedade, forjou sua voz literária nas fornalhas da Segunda Guerra Mundial, testemunhando horrores que jamais o abandonariam. Essa experiência, especialmente o trauma do bombardeio de Dresden, esteve presente em sua obra por cada linha escrita, conferindo-lhe uma perspectiva única sobre a destruição, a desumanização e a busca teimosa por sentido em um mundo muitas vezes absurdo. Sua jornada pregressa, que o levou de químico a vendedor de carros, adicionava camadas à sua visão multifacetada da existência.

Em “2 B R 0 2 B”, publicado em 1962, Vonnegut nos transporta para um futuro onde a morte, outrora a certeza inexorável da vida, foi quase totalmente subjugada pela tecnologia. Uma aparente vitória da ciência que, no entanto, revela um lado sombrio e perturbador. O título, uma brincadeira sombria com o dilema shakespeariano de “ser ou não ser”, já nos coloca no limiar de uma questão fundamental: o que significa viver quando a morte se torna uma escolha, uma moeda de troca para a continuidade da espécie?

O conto nos apresenta a um sistema de controle populacional draconiano, onde o nascimento de uma nova vida exige a morte voluntária de outra. A “Morte Livre” é oferecida como uma solução pragmática para a superpopulação, mas a frieza burocrática com que é administrada e a resignação melancólica dos personagens levantam questionamentos inquietantes. Acompanhamos o Sr. Wehling em um momento crucial: o nascimento de seus trigêmeos. Para que seus filhos vivam, três almas precisam se despedir da existência.

Eis aqui uma premissa inquietante, e Vonnegut tece uma tapeçaria de temas profundos e relevantes, pontuados por ironia, uma graça cênica cínica e quase inconsequente. A própria essência da morte é posta em xeque. Em um mundo sem finitude natural, a vida não corre o risco de perder sua preciosidade, sua urgência? A inevitabilidade da morte, por mais temida que seja, não seria um dos pilares que sustentam nosso apreço pela vida e nossas buscas por significado?


A questão da superpopulação, um problema cada vez mais premente em nosso próprio presente, é explorada em suas consequências extremas. A solução tecnológica apresentada por Vonnegut, embora eficiente em termos de controle demográfico, é carregada por dilemas éticos perturbadores sobre o valor intrínseco de cada vida e o direito de existir.

A tecnologia, frequentemente vista como panaceia para os males da humanidade, é retratada aqui com uma ironia mordaz. Se, por um lado, ela oferece a promessa de imortalidade, por outro, parece desumanizar as relações e os processos mais fundamentais da vida e da morte. A decisão de morrer torna-se um trâmite administrativo, esvaziado de qualquer significado emocional ou espiritual.


No entanto, em meio a essa paisagem fria e aparentemente lógica, Vonnegut insere lampejos de uma humanidade teimosa. O desejo (ou o acidente do destino) de ter filhos, de perpetuar a vida, persiste mesmo diante da necessidade de sacrifício. Essa tensão entre o desejo de viver e a imposição de um sistema desumanizador é o cerne da angústia presente no conto.

A escolha de “2 B R 0 2 B” para inaugurar (junto com sete outros contos) a jornada da Científica Ficção não foi fortuita. O conto é uma feliz representante das histórias que melhor retratam a essência da boa ficção científica: usar o espelho do futuro para refletir criticamente sobre o presente, provocando reflexão e debate. A maestria de Vonnegut reside em sua capacidade de combinar uma narrativa aparentemente simples com camadas de significado profundo, utilizando o humor negro como uma ferramenta afiada para expor as contradições e os absurdos da existência.


Convidamos vocês, leitores curiosos e amantes da ficção que nos faz pensar, a revisitar ou descobrir pela primeira vez este conto inquietante. Em “2 B R 0 2 B”, encontrarão a marca inconfundível de Kurt Vonnegut: uma visão sombria, sim, mas também profundamente humana, que nos força a confrontar as questões mais essenciais sobre a vida, a morte e o futuro que estamos construindo.


Preparem-se para uma leitura que vai te deixar perturbado muito depois da última página.

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