A ARTE DE ESCREVER CONTOS
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A ARTE DE ESCREVER CONTOS

Atualizado: 26 de jun. de 2021

Por Jefferson Sarmento


Aprendi a gostar de histórias longas antes de descobrir que havia um espaço no mundo para pequenas gotas delas – que vinham na forma do que chamamos de contos. Mais ou menos, descobri que um bom argumento não precisa ter centenas de páginas para que você o compreenda e o ache genial.

– Certo, gênio, você descobriu a pólvora!

– Ei, isso foi lá atrás! Foi quando descobri na biblioteca do colégio uma coletânea chamada Histórias Extraordinárias, do Edgar Allan Poe.

Pequenos episódios entrecortados que me traziam uma certa liberdade de fechar o livro e seguir vivendo sem as agruras de um “o que vem a seguir?”. Sem, por isso, serem menos instigantes, intrigantes e extraordinários! Poe era mestre nessa tarefa. Morreu com 40 anos e deixou um legado de histórias tão fantásticas que é considerado o inventor da ficção policial! A cultura em geral se apropriou de suas obras (e até do mito em torno do autor, cuja causa da morte segue uma incógnita ainda hoje) e sua influência transita pelo cinema, televisão, música, artes plásticas...

Isso tudo escrevendo... contos! Macabros!

Ah!, que Deus me livre das garras do arquidemônio! Mal tinha o eco das minhas pancadas mergulhado no silêncio, quando uma voz lhes respondeu de dentro do túmulo: um gemido, a princípio abafado e entrecortado como o choro de uma criança, que depois se transformou num prolongado grito sonoro e contínuo, extremamente anormal e inumano. (O gato preto, Edgar Allan Poe)

Ao longo do tempo, passei por grandes contistas fantásticos, como Howard Phillips Lovecraft e seu assombroso universo sobrenatural, carregando o terror com tintas de ficção científica e de fantasia. Ou Raymond Chandler, que escrevia periodicamente para a revista Black Mask, de seu mestre e contemporâneo Dashiell Hammett – considerado o pai da literatura noir – e trouxe ao mundo a história policial crua e abnegada de mistérios fantásticos ou rocambolescos: Chandler e Hammett são brutos, inventaram a canastrice cínica em personagens que encontram eco nos heróis engraçadinhos do cinema contemporâneo – aqueles que sempre têm uma frase pronta em qualquer circunstância e tiram sarro dos piores momentos, mesmo estando de frente para a morte certa.

Da ironia por trás dos contos absurdamente divertidos de Machado de Assis à quase pornográfica fila de estereótipos de Nelson Rodrigues, passando pelos violentos e sádicos textos de Rubem Fonseca, também tive minha cota de autores brasileiros mestres na arte de pinçar pequenos trechos do cotidiano (ou da imaginação, se assim melhor cabe) e imprimir aos nossos olhos o horror ou a miséria, o mistério ou o amor em pacotes curtos de palavras.

Depois, na frente do espelho ensaiei a história que ia contar para a polícia. Seu delegado, isso aconteceu no mês passado com o morador do 1201, que também misturava bebida com calmantes, era alto e gordo como o meu marido e caiu da varanda, a grade é muito baixa.
(Francisca, Rubem Fonseca)

Escrever contos não é uma tarefa fácil como pode parecer num primeiro instante. Não se trata de concisão ou poder de síntese. Não estamos falando de resumir ou cortar uma história maior – isso seria um crime! Para uma mente que pensa em teias de acontecimentos, escrever uma história curta é um exercício de foco e paciência: é entender que um pequeno trecho dessas realidades paralelas inventadas pela imaginação (ou copiadas do mundo palpável e cru ao nosso redor) esconde um pequeno planeta, um mundo, uma vida que se destaca de todo o resto. Um ser construído de palavras que compõem uma sinfonia com começo, meio e fim; cabeça, tronco e membros – na verdade, cabe ao contista decidir se apresentará o corpo todo ou entregará ao leitor a opção de imaginar como seria aquele lábio, aquele braço ou dedo suprimido da foto original.

Não existe tamanho ideal para a coisa e essa questão pode acabar enlouquecendo críticos ou analistas literários. Nelson Rodrigues escrevia para jornais e periódicos os seus contos canalhas sobre o cotidiano. E crônicas deliciosas sobre futebol, política e o brasileiro médio caricato que todos somos (com nossas paixões e vícios). O meio demandava uma certa métrica e dimensão...

Mas Tripulação de esqueletos, segunda coletânea de contos de Stephen King, inicia-se com o longo O nevoeiro, que se transformou num filme assustador e corajoso nas mãos de Frank Darabond. O próprio autor sugere, na introdução do livro, que O nevoeiro acabou um texto maior do que um conto comum, mas menor do que um romance ou novela deveria ser. O que importa, no fim das contas, é a história dentro das grades de palavras que as linhas formam, com o leitor ávido escapando pelas frestas da imaginação como um fugitivo descobrindo mundos novos.

Era uma coisa voadora. Fora isso, eu não poderia afirmar mais nada. O nevoeiro pareceu escurecer, exatamente da maneira como Ollie havia descrito, somente que a mancha escura não diminuiu; solidificou-se em algo de asas coriáceas que se agitavam, um corpo branco-albino, de olhos avermelhados. (O nevoeiro, Stephen King)

Seja como for (que tamanho ou tema lhe sirva de toalha de mesa), acredito que um bom conto precisa nos deixar ávidos pelo episódio seguinte – ainda que eu saiba que esta aqui é uma daquelas séries que abordam

monstros diferentes a cada semana – ou a cada capítulo.

Fechar aquele trecho do livro com um sorriso de satisfação e confiança é o que de melhor um autor pode esperar de suas pílulas literárias, seus filhotes afáveis ou malfazejos.

Criar precisa ser tão divertido quanto ler uma boa história o é. E às vezes, assim como os leitores, escrevinhadores precisam de escapismos e diversões rápidas para descansar a imaginação antes de uma nova longa jornada.

Ou é até mesmo a história que pede um passo curto e um beijo roubado no encontro rápido com seu predestinado e amado leitor fiel.

 


Jefferson Sarmento é escritor da Tramatura, autor de A Casa das 100 Janelas, Relicário da Maldade, Alice em Silêncio... e colaborador da Casa de Tramas.




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