O Grande Deus Pã e o nascimento do horror moderno
- Tramatura

- 27 de out.
- 4 min de leitura
Antes de Lovecraft e de Stephen King, Arthur Machen revelou o medo que vive nas entrelinhas — e agora, ele retorna nas páginas de Gritos de Horror #003

Há terrores que não rugem nem sangram. Eles apenas insinuam, rondam e aguardam o instante em que o racional cede espaço ao abismo. Arthur Machen compreendia isso como poucos. Nascido Arthur Llewellyn Jones em 1863, na pequena Caerleon, no País de Gales, uma terra de colinas antigas, ruínas romanas e mitos ainda vivos, Machen cresceu entre histórias de deuses e aparições. O cenário que o cercava era, para ele, mais do que geografia: era um portal. Desde cedo, parecia convencido de que o mundo visível é apenas uma máscara, um véu frágil sobre algo maior.
E infinitamente mais assustador.

Filho de um padre anglicano, educado na Hereford Cathedral School, Machen não pôde cursar universidade por falta de recursos. Mudou-se para Londres, onde sobreviveu como tradutor, professor particular, jornalista e catalogador de livros. Entre a fome e o fascínio pelas livrarias antigas de Holborn, dedicou-se a leituras esotéricas e tratados alquímicos que o marcariam para sempre. Mais tarde, uniria literatura e misticismo ao ingressar na Ordem Hermética da Aurora Dourada (Golden Dawn) — a mesma sociedade que contava entre seus membros W. B. Yeats, Florence Farr e Aleister Crowley.
Foi nesse caldo de simbolismo, pobreza e inquietação espiritual que nasceu a obra que o tornaria imortal...
O Grande Deus Pã (1894) — o horror além da racionalidade
Publicada em 1894, a novela “O Grande Deus Pã” chocou a moral vitoriana. Críticos a chamaram de “repugnante”, “degenerada”, “um atentado contra a decência”. O motivo? Machen ousou sugerir que a fronteira entre o sagrado e o carnal, entre o humano e o inumano, é mais tênue do que queremos admitir.
A história começa com um experimento cirúrgico que pretende “abrir” a mente de uma jovem para que ela veja o que há além da realidade comum — e termina com a libertação de algo que jamais deveria ter sido tocado. O resultado é Helen Vaughan, uma mulher de beleza inominável e essência monstruosa, cuja presença arrasta os homens à loucura e à morte.
Mas o verdadeiro horror de Machen não está no sangue nem na violência — e sim na sugestão. Seu talento consiste em criar lacunas que o leitor precisa preencher com o próprio medo. É nas sombras dessas entrelinhas que o terror se torna eterno.
O escândalo que virou influência

Na Londres do fim do século XIX, O Grande Deus Pã foi um escândalo. Mas o tempo se encarregou de fazer justiça. Entre os admiradores silenciosos da obra estavam Algernon Blackwood, M. R. James e, mais tarde, H. P. Lovecraft, que reconheceu em Machen “um dos poucos capazes de evocar o verdadeiro terror cósmico”.
A influência de Machen se espalhou pelo século XX: Clive Barker, Stephen King e Neil Gaiman reconheceram sua importância. Em cada um deles, há pistas e insinuações do mesmo princípio: o medo nasce daquilo que não se pode compreender, da percepção de que a realidade é apenas a superfície de algo insondável.
Um homem entre o êxtase e a ruína
A vida de Machen, como a de muitos de seus personagens, foi marcada por contrastes. Ele conheceu a glória e o esquecimento, o misticismo e a miséria. Trabalhou como ator de teatro sob o nome de Arthur Jones, e escreveu até o fim dos seus dias, mesmo quando o público parecia tê-lo esquecido.
Durante a Primeira Guerra Mundial, alcançou momentânea fama com o conto “The Bowmen”, no qual soldados ingleses recebem ajuda sobrenatural dos fantasmas de arqueiros medievais, capitaneados por ninguém menos que São Jorge. O texto foi tão impactante que atravessou as trincheiras da ficção e tornou-se a base, a origem do mito popular dos Anjos de Mons — as pessoas começaram a acreditar que era mesmo um relato real.
Seja como for, o reconhecimento pleno a Machen viria apenas após sua morte, em 1947, quando uma nova geração de leitores e escritores o redescobriu.
Entre o sagrado e o profano: Gritos de Horror #003
O grande tema de Machen, e talvez o segredo de sua perenidade, é a coexistência do divino e do abjeto. Para ele, o terror não era ausência de fé, mas seu espelho distorcido.Em suas histórias, o mal não surge como oposição ao bem, mas como manifestação brutal do sagrado. Ver o Deus Pã, sentir sua presença, é experimentar o êxtase e o horror como uma só coisa. Essa visão ambígua, mística e perturbadora, faz de O Grande Deus Pã não apenas uma história de horror, mas um rito literário.
Portanto, mais de um século depois, “O Grande Deus Pã” retorna nas páginas da Gritos de Horror #003, pela Tramatura, ao lado de outras nove histórias garimpadas das revistas pulp dos anos 1910 a 1960 — além da história original de Lailton Gomes: Sessão Fantasma, vencedora da Primeira Seleção Gritos de Horror.
Ler Machen hoje é revisitar a origem do terror moderno, o momento em que a literatura deixou de temer o invisível e começou a explorá-lo. Entre um parágrafo e outro, ainda se sente o sopro do antigo deus, aquele que mora nas sombras da floresta e dentro de nós. E, talvez, ao fechar o livro, você também o ouça: o rumor distante, o chamado ancestral.
Arthur Machen nunca quis apenas assustar. Ele queria revelar — arrancar o verniz da razão e mostrar o que se esconde por baixo. Em tempos em que o horror se confunde com espetáculo, sua obra continua sendo um lembrete de que o verdadeiro medo é espiritual, cósmico, invisível.
E, quando você terminar de ler O Grande Deus Pã, talvez perceba o que Machen sempre soube: há forças antigas observando.
Elas não precisam se mostrar. Basta que você acredite — e o terror se revela.





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