Folclore brasileiro: a alma encantada do povo
- Jefferson Sarmento
- 9 de jun.
- 3 min de leitura
Há uma força antiga que atravessa os séculos, contada nas vozes dos avós, escrita na poeira dos caminhos, oculta nas encruzilhadas, nas águas escuras dos igarapés ou nas folhas que sussurram em noites de lua. Essa força é o folclore — um conjunto vivo de saberes, mitos, danças, festas, rezas, assombrações e encantamentos que moldam o imaginário popular e sustentam, muitas vezes invisivelmente, as bases culturais de um povo.
No Brasil, essa força ganha contornos múltiplos e coloridos, nascida do caldeirão fervente onde se misturaram as tradições indígenas, as crenças africanas, as lendas ibéricas e o tempero inventivo das gentes misturadas que se espalharam por um território imenso e diverso. O folclore brasileiro não é apenas uma herança, mas uma criação permanente, reinventada a cada geração, entre o medo e o riso, o mistério e a festa.

Folclore: um país feito de mil vozes
Do boto sedutor que emerge das águas amazônicas ao lobisomem que uiva nas noites sertanejas; da mula sem cabeça que galopa pelos cafezais ao saci brincalhão que se esconde no mato — o Brasil é povoado por uma fauna mítica riquíssima, que varia de estado a estado, de vila a vila, de boca em boca.
Na Amazônia, os mitos indígenas se entrelaçam com o catolicismo popular e com a oralidade cabocla para criar seres como o Mapinguari e a Iara. No Nordeste, a seca, o cangaço e a religiosidade moldam figuras como o padre sem cabeça ou a comadre Fulô. No Sul, as lendas de origem europeia ganham novos sotaques e convivem com a crueldade, a religiosidade e fé com o Negrinho do Pastoreio. Já em Minas Gerais e no interior paulista, as histórias de assombração ganham tons barrocos, com procissões de almas penadas, cruzeiros amaldiçoados e garrafas seladas com demônios.
Essa riqueza regional é, ao mesmo tempo, uma prova da diversidade cultural brasileira e um espelho da sua alma. Como bem disse o historiador potiguar Luís da Câmara Cascudo — talvez o maior estudioso do folclore brasileiro — “o Brasil dorme em rede, sonha com saci e acorda com assombração.” Foi ele quem melhor traduziu o espírito encantado do país, com obras monumentais como o Dicionário do Folclore Brasileiro, fruto de uma vida inteira dedicada à escuta atenta das histórias do povo. Câmara Cascudo foi, e continua sendo, um guardião dos mitos e uma ponte entre o saber acadêmico e a tradição oral, devolvendo ao Brasil o valor de sua própria fantasia.

Fantasmas que narram o país
O folclore não é só um conjunto de personagens exóticos: é, sobretudo, uma linguagem. Uma forma simbólica de explicar o mundo, de lidar com o medo, de preservar a memória coletiva e de expressar, em forma de narrativa, as angústias, esperanças e contradições de uma sociedade. É possível ler os mitos como se lê um povo. Cada assombração carrega em si uma história, um trauma, um desejo.
É por isso que o folclore continua tão atual — mesmo que disfarçado. Está presente nos memes, nas festas populares, nas músicas de roda, nos ditados, nos jogos, nas crenças de fim de noite, nas superstições que resistem ao tempo. Está, também, na literatura.
Autores contemporâneos têm voltado o olhar para esse território fértil, reinventando mitos sob novas perspectivas. É o caso do livro Terra de Almas Perdidas, que parte da figura do cramulhão engarrafado — uma entidade maléfica selada dentro de uma garrafa, à espera de alguém que a liberte — para construir uma história de horror e identidade, onde o sobrenatural serve como metáfora para os segredos enterrados da alma brasileira.
Já o próximo romance, A menina que fotografava estranhos (com lançamento previsto para agosto), mergulha ainda mais fundo nesse universo de crenças e entidades, usando o folclore como elemento essencial da narrativa. Nele, o fantástico e o real se entrelaçam em um tecido narrativo onde o que é dito e o que é sussurrado convivem em tensão constante — como nas melhores histórias contadas em volta de uma fogueira.
A importância de manter os olhos abertos
Valorizar o folclore é valorizar a própria cultura. É reconhecer que os saberes populares, muitas vezes marginalizados ou reduzidos a “curiosidades infantis”, são parte fundamental da História e da identidade do país. São memórias vivas, que resistem ao esquecimento e nos conectam com um passado que não é apenas histórico, mas também simbólico.
É por isso que estudar, preservar, reinventar e divulgar o folclore brasileiro é um gesto de resistência e de criação. Um convite para escutar com atenção os ecos antigos que ainda sussurram nos cantos escuros do imaginário. Porque talvez, ao nos aproximarmos desses mitos, estejamos também nos aproximando de nós mesmos.
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